sábado, 11 de julho de 2009

A ocultação do saber

A sabedoria, nēmequ como lhe chamavam os Babilónios, era inicialmente uma virtude humana. Poderia aparecer expressa numa sentença judicial, num conselho sábio ou num dito piedoso. Porém, na viragem do segundo para o primeiro milénio a.C., a sabedoria haveria de tornar-se uma virtude exclusiva dos deuses, ainda que atingível pela experiência: esta alteração daria azo à revelação como fonte de sabedoria.

Um testemunho eloquente desta transformação, segundo Karel van der Toorn, estudioso das religiões e línguas do Oriente Antigo, encontra-se em duas versões do épico de Gilgamesh - o herói barbudo que vemos na imagem acima. Na edição babilónica antiga, de c. 1600 a.C., Gilgamesh é aconselhado por uma taberneira a gozar a vida tanto quanto puder - a encher a barriga, alegrar-se, dançar, cantar, tomar banhos, olhar para a amada, abraçá-la. Na versão de c. 1100 a.C., o poema épico de Gilgamesh aparece já encimado por um prólogo onde se diz que Gilgamesh é um sumo sábio, pois conheceu o segredo acerca do dilúvio. Na parte final desta segunda versão conta-se ainda que Gilgamesh recebeu a sabedoria de Utnapishtim, o herói que sobreviveu ao dilúvio (um primeiro esboço do Noé bíblico, portanto). Curiosamente, o carpe diem da taberneira também desapareceu nesta segunda versão.

Uma alteração profunda ocorrera entre 1600 e 1100 a.C.: o que era sabedoria humana passou a ser segredo revelado apenas a alguns, no caso a Gilgamesh. Esta alteração - do saber por experiência para o saber por revelação - originaria não só práticas exorcistas e divinatórias, como também permitiria o longo caminho que iria ser feito, por exemplo, na Bíblia ou nos cultos mistéricos gregos, séculos mais tarde.

Mas falta responder à mais difícil pergunta: porquê? Segundo van der Toorn, a justificação está na fixação das estórias por escrito; numa sociedade iletrada, como era a do Oriente Antigo babilónico, a escrita veio selar um conhecimento que antes era trasmitido oralmente. Ser escriba tornou-se privilégio de iniciado e a escrita, ao invés de ser meio de comunicação, como agora, tornou-se objecto de veneração. Paradigmas que mostram como a história tem corsi e ricorsi.
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1 comentário:

  1. Aditamento: na Grécia, foi o movimento que tornou público o saber, através da escrita, que fez dele um bem comum da cidade, uma "norma susceptível de se impôr a todos, tal como a lei". Este primeiro movimento de divulgação, na Grécia, ocorreu com Anaximandro e Ferecides, entre outros, contribuindo para a emergência da pólis como espaço igualitário.

    Cf. VERNANT, Jean-Pierre, Origens do Pensamento Grego, Lisboa: Teorema, 1987, p. 60.

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