segunda-feira, 27 de julho de 2009

O legado oriental




Daniel Snell alinhou recentemente os principais legados do mundo oriental antigo aos nossos dias, o que inclui não só técnicas e práticas, mas também ideias e instituições. Um legado bem antigo e hoje tido por básico mas que foi transmitido ao longo de séculos de maturação cultural.

Desde logo a cidade. No final do IV milénio a.C, as favoráveis condições de segurança e comerciabilidade atraíram populações para Uruk, junto ao rio Eufrates, mesmo sabendo que aí corriam maiores riscos de saúde. Com Uruk nascem as cidades, que não mais deixariam de existir até aos nossos dias. É uma primeira herança do mundo antigo oriental. Por Amor das Cidades foi a frase aparentemente não verbal que o medievalista Jacques le Goff escolheu para intitular uma sua obra recente.

Também a escrita nasceu na antiga Suméria pouco tempo antes de aparecerem os primeiros signos hieroglíficos no Antigo Egipto. Para além das escritas cuneiforme e hieroglífica, o sistema alfabético viu a luz do dia no Próximo Oriente Antigo tornando-se depois dominante no quadrante ocidental.

Outro elemento hoje tão básico que parece natural apareceu também pela primeira vez no mundo pré-clássico: a autoridade política, seja sob forma real ou governamental. A protecção dos mais desfavorecidos e a oferta de condições de segurança às populações apareceram como função política bem antes de Gregos e Romanos. Esta inovação oriental liga-se ainda à instituição do poder local representativo, também ela - essa instituição - surgida no espaço e tempo orientais.

Snell acrescenta à lista dos legados orientais a paixão pelo registo: as tabuínhas de argila em cuneiforme, onde eram registadas mercadorias e animais transaccionados por exemplo nos templos, são antepassados mediatos dos registos virtuais dos nossos dias. No Oriente Antigo, como hoje, registava-se tudo o que era importante demais para ser esquecido e difícil demais para ser lembrado sem alguma "extensão de memória".

Também a ideia de que a lei deve regular as sociedades humanas foi originada no período pré-clássico. O "código" de Hammurabi é apenas um caso famoso. Nas várias compilações legais do Oriente Antigo estão sempre subjacentes os valores das respectivas comunidades, a novidade foi fixá-los por escrito e dar-lhes força de lei. É o que Snell chama "o espírito das leis", numa citação directa de Montesquieu.

A ideia de liberdade aparece igualmente na relação de bens legados pelo Oriente Antigo. Porém, a liberdade, por exemplo de circulação de pessoas, como se sabe ainda hoje não conseguida em alguns países, veio a ser correlacionada com a ideia de responsabilidade também no Oriente Antigo. A concordância de liberdade e responsabilidade permanece essencial à sobrevivência da espécie.

Mas também a poesia. As lamentações, género literário frequente na Mesopotâmia, bem como as autobiografias apologéticas inscritas nos túmulos egípcios demonstram que também a poesia, ou pelo menos alguns dos seus géneros, nasceram no período pré-clássico.

A ideia religiosa de que se vive apenas uma vez, básica para um ocidental do séc. XXI, foi uma crença também transmitida pelo Oriente Antigo. Talvez não seja de todo descabido lembrar que boa parte do mundo não a partilha. Também ela é uma construção cultural fabricada antes de Helenos e Latinos. O próprio monoteísmo foi descoberto no Próximo Oriente Antigo e escusado será dizer quão importante é ainda hoje.

A conhecida semana de sete dias e o calendário foram de igual modo criados no período pré-clássico, invenção que andará ligada à prática da astronomia, que já nessa época permitia o registo do movimento dos planetas e de outros astros. Os dados mesopotâmicos terão sido essenciais para os resultados obtidos por Ptolomeu, designadamente para a sua concepção do sistema cosmológico geocêntrico.
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A própria ideia de enciclopedismo, segundo Snell, deu os seus primeiros passos na Mesopotâmia. Só formalmente nasceu com a Encyclopédie francesa do séc. XVIII d.C. A ideia de que é necessário listar os elementos relevantes para compreender o mundo emergiu na Mesopotâmia: bem antes de Diderot já existia uma "ciência das listas".

A lista do legado oriental contém mais itens. Mas basta aditar mais um: a ideia de educação. A tese de que são necessárias escolas e ensino esteve constantemente presente no mundo oriental antigo. O reconhecido sumerólogo Samuel Noah Kramer disse que as primeiras escolas, à cabeça das quais se encontrava o ummia - o "especialista" ou "professor" - apareceram na Suméria. Efectivamente, não pode conceber-se uma sociedade organizada sem um sistema de ensino.

Podemos chamar a tudo isto um legado antigo? Talvez não. Será mais adequado falar em estruturas, algo que vive na longa duração braudeliana. Viveu ontem e define a vida de hoje.

Cf. Snell, Daniel, A Companion to Ancient Near East, Malden: Blackwell Publishing, 2005.
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