A “questão homérica”, assim chamada, não porque haja evidência de que Homero a tenha formulado, mas porque se refere à autoria dos seus textos, desenvolveu-se notavelmente no século XIX d.C., acompanhando um movimento crítico que então versava sobre o texto bíblico. Porém, já na Antiguidade esta questão fora colocada em termos críticos.
Cícero, que viveu entre os anos 106 e 43 a.C., sugeriu que os textos homéricos então conhecidos fossem uma revisão que Pisístrato fizera à obra de Homero. Por seu turno, Josefo, um historiador judeu do séc. I d.C., aventou a hipótese de Homero não saber escrever, o que foi já entendido como uma tentativa de demonstrar a superioridade da cultura hebraica em relação à cultura grega antiga, já que os Hebreus teriam conhecido a escrita antes dos Gregos.
Quiçá mais hispidamente, no séc. XVII d.C. François Hédelin, Abade de Aubignac e de Meimac, insurgiu-se contra a Ilíada e a Odisseia, qualificando-as de pobres na caracterização, com fracos argumentos e ética e teologicamente desprezíveis, chegando mesmo ao ponto de afirmar que Homero nunca existiu; os seus textos seriam apenas colecções de rapsódias da autoria de outros. E nem só em França se pensava assim; Giambattista Vico, autor da famosa Scienza Nuova (publicada em 1725), também estava convicto que Homero nunca existira e que os poemas “homéricos” eram criações de todo um povo.
No séc. XIX d.C., as opiniões dos Analistas tinham larga aceitação, assentando na tese de que as obras de Homero eram uma combinação de poemas e fragmentos anteriores; o trabalho a fazer estaria na descoberta desses ingredientes de base. No início do séc. XX d.C., argumentando que a Ilíada e a Odisseia tinham uma tal excelência de estrutura, assim como consistência na criação de caracteres, os Unitaristas defendiam que as obras homéricas não poderiam ter resultado do trabalho de muitos, teriam apenas um autor.
A descoberta de Milman Parry, na segunda década do séc. XX, viria a revelar-se esclarecedora da dita “questão homérica”. A tese central era esta: as características distintivas da poesia homérica deviam-se a uma economia de palavras dirigida por métodos de composição oral. Os estudos de Milman Parry e dos seus discípulos viriam a revelar as diversas fórmulas presentes na Ilíada e na Odisseia. Homero, mais do que um criador, reunira linhas que pertenciam à oralidade do seu tempo. Helena e Páris – pintados na figura acima por Jacques-Louis David em 1788 – não eram criações ex novo de Homero.
Cantadas séculos antes de Homero, as obras homéricas não foram criadas na primeira metade do séc. VIII a.C, nesse período apenas passaram a escrito. Pode imaginar-se o nível de cultura oral pré-homérica a partir dos seus textos, já que, nas culturas predominantemente não escritas, o conhecimento uma vez adquirido tinha de ser frequentemente repetido para que não se perdesse; daí a importância do pensamento formulaico.
A primitiva poesia escrita era assim uma mimese escrita duma performance oral. Parece até que este fenómeno literário ainda hoje persiste: o autor sírio-otomano Kahlil Gibran, nascido em Bsharri, no actual Líbano, e falecido em Nova Iorque em 1931, parece ter-se dedicado a pôr por escrito elementos formulaicos que os americanos do Norte consideravam invulgares, mas que para os libaneses eram lugares-comuns.
E mesmo entre nós, falantes e pensantes em língua portuguesa, quando dizem que José Saramago tem uma maneira assim “esquisita” de pontuar os seus textos, o autor diz que é preciso lê-los em voz alta; ou seja, fazer o processo inverso daquele que Homero terá feito quando escreveu as suas obras. Já dizia Saussure que a escrita é apenas a forma visível da linguagem falada.
Cf. ONG, Walter J., Orality and Literacy, London and New York: Routledge, 1982.
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