sábado, 30 de janeiro de 2010

De Homero a Saramago



A “questão homérica”, assim chamada, não porque haja evidência de que Homero a tenha formulado, mas porque se refere à autoria dos seus textos, desenvolveu-se notavelmente no século XIX d.C., acompanhando um movimento crítico que então versava sobre o texto bíblico. Porém, já na Antiguidade esta questão fora colocada em termos críticos.

Cícero, que viveu entre os anos 106 e 43 a.C., sugeriu que os textos homéricos então conhecidos fossem uma revisão que Pisístrato fizera à obra de Homero. Por seu turno, Josefo, um historiador judeu do séc. I d.C., aventou a hipótese de Homero não saber escrever, o que foi já entendido como uma tentativa de demonstrar a superioridade da cultura hebraica em relação à cultura grega antiga, já que os Hebreus  teriam conhecido a escrita antes dos Gregos. 

Quiçá mais hispidamente, no séc. XVII d.C. François Hédelin, Abade de Aubignac e de Meimac, insurgiu-se contra a Ilíada e a Odisseia, qualificando-as de pobres na caracterização, com fracos argumentos e ética e teologicamente desprezíveis, chegando mesmo ao ponto de afirmar que Homero nunca existiu; os seus textos seriam apenas colecções de rapsódias da autoria de outros. E nem só em França se pensava assim; Giambattista Vico, autor da famosa Scienza Nuova (publicada em 1725), também estava convicto que Homero nunca existira e que os poemas “homéricos” eram criações de todo um povo.

No séc. XIX d.C., as opiniões dos Analistas tinham larga aceitação, assentando na tese de que as obras de Homero eram uma combinação de poemas e fragmentos anteriores; o trabalho a fazer estaria na descoberta desses ingredientes de base. No início do séc. XX d.C., argumentando que a Ilíada e a Odisseia tinham uma tal excelência de estrutura, assim como consistência na criação de caracteres, os Unitaristas defendiam que as obras homéricas não poderiam ter resultado do trabalho de muitos, teriam apenas um autor.

A descoberta de Milman Parry, na segunda década do séc. XX, viria a revelar-se esclarecedora da dita “questão homérica”. A tese central era esta: as características distintivas da poesia homérica deviam-se a uma economia de palavras dirigida por métodos de composição oral. Os estudos de Milman Parry e dos seus discípulos viriam a revelar as diversas fórmulas presentes na Ilíada e na Odisseia. Homero, mais do que um criador, reunira linhas que pertenciam à oralidade do seu tempo. Helena e Páris – pintados na figura acima por Jacques-Louis David em 1788 – não eram criações ex novo de Homero.

Cantadas séculos antes de Homero, as obras homéricas não foram criadas na primeira metade do séc. VIII a.C, nesse período apenas passaram a escrito. Pode imaginar-se o nível de cultura oral pré-homérica a partir dos seus textos,  já que, nas culturas predominantemente não escritas, o conhecimento uma vez adquirido tinha de ser frequentemente repetido para que não se perdesse; daí a importância do pensamento formulaico.

A primitiva poesia escrita era assim uma mimese escrita duma performance oral. Parece até que este fenómeno literário ainda hoje persiste: o autor sírio-otomano Kahlil Gibran, nascido em Bsharri, no actual Líbano, e falecido em Nova Iorque em 1931,  parece ter-se dedicado a pôr por escrito elementos formulaicos que os americanos do Norte consideravam invulgares, mas que para os libaneses eram lugares-comuns.

E mesmo entre nós, falantes e pensantes em língua portuguesa, quando dizem que José Saramago tem uma maneira assim “esquisita” de pontuar os seus textos, o autor diz que é preciso lê-los em voz alta; ou seja, fazer o processo inverso daquele que Homero terá feito quando escreveu as suas obras. Já dizia Saussure que a escrita é apenas a forma visível da linguagem falada.

Cf. ONG, Walter J., Orality and Literacy, London and New York: Routledge, 1982.
.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Scribendum est



No Antigo Egipto, desde cedo que as escolas eram controladas por sacerdotes com o propósito de guardarem ciosamente as “palavras divinas”, ainda que o escriba pudesse aprender a arte da escrita com o seu pai. Envergando o saiote branco (visível, por exemplo, na famosa estatueta egípcia), o escriba guardava os manuscritos numa espécie de scriptorium, um espaço reservado e designado Casa da Vida. Ou seja, para os Egípcios, a casa da vida guardava textos, literatura.


Já no período sumério, os jovens frequentavam a edubba ou “casa das tabuinhas”, aludindo ao suporte então usado para a escrita, as tabuinhas de argila. Após a iniciação nos signos cuneiformes, o curriculum incluia a cópia de listas de palavras e a escrita de memória, fazendo que um aluno fosse qualificado de especialista após ter copiado, regra geral, mais de 30.000 linhas de texto, permitindo-lhe percorrer boa parte da literatura de então.


Essa experiência de aprendizagem podia facilitar o escriba a ser poeta e a conseguir uma distinta profissão na administração do reino; por exemplo, o escriba babilónico Ezra foi o responsável no reino pelos assuntos judaicos. E no entanto a arte de ser escriba e o consequente acesso aos altos cargos da administração do país podiam ser perpetuados dentro de uma mesma família. É conhecido um caso assírio em que o mais alto cargo da Chancelaria Real  foi mantido por cinco gerações numa mesma família de sábios. Sabiam muito, está bom de ver.


O facto é que, em geral, havia baixos níveis de literacia no Oriente Antigo, não sendo o Egipto caso diferente. Para ter uma percepção deste fenómeno social, pode olhar-se para Alalakh, na Síria, por volta de 1700 a.C.: numa cidade de cerca de 7.000 habitantes havia sete escribas, ou seja, um por mil. E no entanto, no tempo de Moisés, eram usadas oito línguas diferentes e cinco sistemas de escrita distintos, o que pode parecer um paradoxo.


Esta iliteracia geral trouxe a concentração do poder na classe letrada. O caso de Moisés é paradigmático. Foi ensinado na corte egípcia e considerado “poderoso em palavras e em obras”, como conta a Bíblia: “Moisés foi iniciado em toda a ciência dos Egípcios, e era poderoso em palavras e em obras.” (Actos 7:22). Essas aptidões permitiram-lhe registar os mandamentos divinos e as decisões legais (e também um canto), tendo ainda designado escribas oficiais entre o seu povo com o propósito de assentarem decisões e ordens. “Escolhi, pois, os principais das vossas tribos, homens sábios e experimentados, e nomeei-os vossos chefes, quer como comandantes de milhares, de centenas, de cinquentenas e de dezenas, quer como escribas das vossas tribos” (Deut. 1:15). 


Entre Moisés – pintado na figura por João Zeferino da Costa em 1868 a receber as Tábuas da Lei – e  David, não se sabe quem guardou os mandamentos divinos registados pelo primeiro, mas, do reinado de David até Josias (sécs. X-VII a.C), a Arca que continha a lei suprema para os Hebreus (a Torah) foi precisamente confiada, entre outros, a escribas do reino.


Cf. ACKROYD, P. R., EVANS, C. F., Cambridge History of the Bible, From the Beginnings to Jerome, Cambridge: Cambridge University Press, 1993.
.