“Eles não sabem, nem sonham, / que o sonho comanda a vida / Que sempre que um homem sonha / o mundo pula e avança”. Assim diz António Gedeão em poema musicado e ouvido até à exaustão: a famosa Pedra Filosofal, claro está. Porém, entre os Hititas, povo que viveu na Anatólia antiga – na zona da actual Turquia - entre o séc. XVIII a.C. e o séc. XIII a.C., o sonho nem sempre serviu para pular e avançar, por vezes obrigava a parar e a adiar, especialmente rituais.
Na Anatólia hitita, a pureza ritual implicava ter uma conduta irrepreensível, de tal modo que em vários textos anatólicos da região de Kizzuwatna e de Arzawa se percebe que o sonho ajudava a determinar o estado de pureza do sonhador, essencial para a boa realização do ritual, fosse de nascimento ou destinado a outros fins.
Num ritual de nascimento kizzuwatniano, destinado a ser realizado por uma mulher grávida, lê-se o seguinte: “No dia seguinte, a mulher lava-se. Se a mulher, em consequência do seu sonho, está pura, o sacerdote patili coundiza-la-á à mesa de parto. Mas se, em consequência do sonho, ela não estiver pura, ela prosternar-se-á diante do ‘quarto interior’. De seguida, do exterior do quarto, ela aproximará a mão da mesa de parto.” (KUB 9.22 iii 29–37).
Trata-se de um ritual de incubação divinatório que a mulher grávida deveria fazer por indicação do sacerdote patili. O sonho que a mulher grávida conta ao sacerdote patili é por este interpretado revelando assim a disposição dos deuses: se estão favoráveis ou não. Apenas depois da aprovação sacerdotal, ou seja, do bom resultado que a hermenêutica aplicada ao sonho permitisse, a mulher se poderia deitar na cama de parto e finalmente dar à luz.
Se porventura a mulher não tivesse tido nenhum sonho ou ele não fosse claro em relação à vontade dos deuses, o sacerdote interpretaria a situação como desaprovação divina e a mulher, grávida, teria de esperar por melhor momento para realizar o ritual de nascimento e então dar à luz. Adivinham-se algumas complicações na aplicação deste ritual, a lei da natureza nem sempre acompanha a lei divina…
A pureza, era o problema da pureza que estava na base das preocupações de sacerdotes e parturientes. Mas não só, também os doentes se preocupavam com o seu grau de pureza. O ritual Paškuwatti de Arzawa, uma outra região da Anatólia hitita, é-nos dado a conhecer por este texto: “O paciente dorme. Ele dirá se viu em sonhos a incarnação da deusa, se ela vem até ele e se deita com ele. Durante três dias, durante os quais eu invocarei a deusa, ele relatará os sonhos que vir, e dirá se a deusa lhe mostra os olhos, ou se a deusa se deita com ele” (KUB 9.27+ iv 1–10).
Desta vez, a pureza do paciente é determinada pelo comportamento da deusa no seu sonho. Trata-se da deusa Uliliyašši: se ela se deitar com ele, então está puro, se apenas lhe mostrar os olhos então não há pureza no paciente. Para os Hititas, existiam assim diferentes graus de pureza, conhecidos precisamente através da interpretação dos sonhos, bem antes de Sigmund Freud está bom de ver. O caso é que o acto sexual de uma deusa com um mortal apenas poderia ser realizado com um homem puro, caso contrário… o mortal apenas lhe veria os olhos. Mas não é pouco privilégio sabendo que se trata de uma deusa! E afinal de contas são sonhos...
Cf. Mouton, Alice, Rêves Hittites, Leiden-Boston: Brill, 2007.
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