quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Às portas de Jerusalém

Jerusalém, Porta de Damasco

"[...] há uma confusão à volta do termo utilizado pelas civilizações ocidentais, que vem do grego. Em grego, Bíblia é um plural - "os livros". Mas como a terminação "a" é geralmente feminina e singular em latim e nas línguas que dele derivam, passou a pensar-se que aquilo era um livro, e de facto nas versões modernas é apresentado num volume. Só que nunca pretendeu ser um livro, mas um volume que tem dezenas de livros. Diferentes! Portanto, é uma biblioteca no sentido estrito. A Bíblia é uma biblioteca pequena, mas que dá muito que falar."

Da entrevista a Francolino Gonçalves, no Público.
.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Vontades marinheiras de aproar

Cena de amor num modelo de cama em terracota
Período Babilónio Antigo

“Homem do meu coração, meu amado, o teu encanto é doce, doce como mel. Jovem do meu coração, meu amado, teu encanto é doce, doce como mel.
Tomaste-me, irei de minha livre vontade até ti. Homem, deixa-me fugir contigo – para o quarto. Tomaste-me, irei de minha livre vontade até ti. Jovem, deixa-me fugir contigo – para o quarto.
Homem, deixa-me fazer-te as mais doces coisas. Meu docinho precioso, deixa-me trazer-te mel. Com mel gotejando no quarto gozemos uma e outra vez teu encanto, o doce. Jovem, deixa-me fazer-te as mais doces coisas. Meu docinho precioso, deixa-me trazer-te mel.
Homem, tu foste atraído por mim. Fala à minha mãe e eu entregar-me-ei a ti; fala a meu pai e ele fará de mim um dote. Eu sei onde dar prazer ao teu corpo – dorme, homem, em tua casa até de manhã. Eu sei como trazer deleites a teu coração – dorme, jovem, em tua casa até de manhã.
Já que te apaixonastes por mim, jovem, se me pudesses fazer tuas doçuras…
Meu senhor e deus, meu senhor e anjo da guarda, meu Shu-Suen que alegra o coração de Enlil, se pudesses apenas manejar o doce sítio, se pudesse agarrar o teu sítio que é doce como mel.
Põe tua mão ali, por mim, como cobertura de uma medida. Alarga tua mão ali, por mim, como cobertura de uma taça de madeira.
Balbale de Inana.”

Canção de amor como se fosse cantada por Inana, a deusa suméria do amor. Boa parte das canções de amor sumérias foram compostas por homens, mas escritas em voz feminina. O desejo de Inana dirige-se aqui a Shu-Suen, rei da III Dinastia de Urim.

Cf. BLACK, Jeremy, et al., The Literature of Ancient Sumer, Oxford: University Press, 2004.
.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Utopias

Tucídides

“Somos amantes da beleza sem extravagâncias e amantes da filosofia sem indolência. Usamos a riqueza mais como uma oportunidade para agir que como um motivo de vanglória; entre nós não há vergonha na pobreza, mas a maior vergonha é não fazer o possível para evitá-la. Ver-se-á em uma mesma pessoa ao mesmo tempo o interesse em atividades privadas e públicas, e em outros entre nós que dão atenção principalmente aos negócios não se verá falta de discernimento em assuntos políticos, pois olhamos o homem alheio às actividades públicas não como alguém que cuida apenas de seus próprios interesses, mas como um inútil; nós, cidadãos atenienses, decidimos  as questões públicas por nós mesmos, ou pelo menos nos esforçamos por compreendê-las claramente, na crença de que não é o debate que é empecilho à ação, e sim o fato de não se estar esclarecido pelo debate antes de chegar a hora da ação.”

Em grego clássico:

"φιλοκαλοῦμέν τε γὰρ μετ᾽ εὐτελείας καὶ φιλοσοφοῦμεν ἄνευ μαλακίας: πλούτῳ τε ἔργου μᾶλλον καιρῷ ἢ λόγου κόμπῳ χρώμεθα, καὶ τὸ πένεσθαι οὐχ ὁμολογεῖν τινὶ αἰσχρόν, ἀλλὰ μὴ διαφεύγειν ἔργῳ αἴσχιον. [2] ἔνι τε τοῖς αὐτοῖς οἰκείων ἅμα καὶ πολιτικῶν ἐπιμέλεια, καὶ ἑτέροις πρὸς ἔργα τετραμμένοις τὰ πολιτικὰ μὴ ἐνδεῶς γνῶναι: μόνοι γὰρ τόν τε μηδὲν τῶνδε μετέχοντα οὐκ ἀπράγμονα, ἀλλ᾽ ἀχρεῖον νομίζομεν, καὶ οἱ αὐτοὶ ἤτοι κρίνομέν γε ἢ ἐνθυμούμεθα ὀρθῶς τὰ πράγματα, οὐ τοὺς λόγους τοῖς ἔργοις βλάβην ἡγούμενοι, ἀλλὰ μὴ προδιδαχθῆναι μᾶλλον λόγῳ πρότερον ἢ ἐπὶ ἃ δεῖ ἔργῳ ἐλθεῖν."

Para que não haja dúvida, trata-se do Péricles de Tucídides sobre a Atenas de há dois mil e quinhentos anos, não é coisa de agora.

N. b.: Texto em português da tradução de Mário da Gama Cury (São Paulo, 1982), a primeira tradução integral para português, directamente do grego clássico, da colossal obra de Tucídides. Surge agora e em boa hora a segunda integral pelas mãos de M. Gabriela P. Granwehr e Raul Rosado Fernandes (Lisboa, 2010).
.