terça-feira, 15 de setembro de 2009

As uvas de Zeuxis





Os filósofos e os historiadores da Antiguidade Grega pouca nota deram de artes como a escultura ou a pintura. O facto é que estas duas artes não estavam atribuídas a nenhuma Musa porque o ofício de artista era pouco apreciado, sendo por isso colocado num patamar social hierarquicamente inferior. Porém, um estudo dos estereótipos sobre os agentes das Belas-Artes permite perceber as modalidades históricas dessa área de significação.


Por exemplo, a ideia de que o pintor ou o escultor é um ser inspirado, como se de um pequeno deus se tratasse, não tinha lugar no antigo conceito de artista: esse estatuto estava reservado apenas aos escritores. Só com o advento do movimento humanista se fez essa associação. Seria Marsílio Ficino a ligar a ideia platónica de enthousiasmos, de loucura de inspiração divina, ao campo das Belas-Artes e que, de resto, iria mais tarde dar lugar ao conceito contemporâneo de génio que trabalha para um reconhecimento post mortem.


Mas já na Antiguidade Grega um artista inteligente tentaria provar que as suas capacidades eram mais que mera competência técnica. O exercitador de Belas-Artes como a escultura ou a pintura esforçava-se por se distinguir do mero artesão, queria já separar a arte do artesanato. Para tal, os artistas permitiam-se até não receber dinheiro pelas suas obras de arte, de forma a vincarem a sua distinção em relação aos bánausoi, os que faziam da reprodução artística uma actividade puramente mecânica.


Zeuxis, um pintor grego do séc. V a.C. do qual não possuímos hoje nenhuma obra (o que em si já é significativo), considerava-se com frequência injustiçado pelos seus concidadãos, já que eles não apreciavam devidamente as suas obras de arte. Por essa razão decidiu distribuir as suas pinturas gratuitamente, com a justificação de que eram impagáveis! Na verdade, pretendia demarcar-se dos tais bánausoi.


Por outro lado, o reconhecimento artístico era buscado pela via da disputa retórica com colegas de profissão ou perante o público.Um famoso concurso ocorreu entre Zeuxis e Parrássio, segundo conta Plínio na sua Naturalis Historia: Zeuxis decidiu apresentar a Parrássio uma pintura em que estavam representadas uvas, mas uvas de tal modo realistas que os pássaros se dirigiram a elas para as debicarem. Imagina-se o espanto de Parrássio, mas este não se ficou: quando Zeuxis pediu que o seu rival afastasse a cortina da tela para que ele pudesse ver a sua pintura, Parrássio esclareceu que a cortina era a própria pintura. Se Zeuxis enganara os pássaros, Parrásio iludira um homem: o próprio Zeuxis!


Cf. Wyss, Beat, "Artists, Legends Concerning", Brill's New Pauly, vol. I, Leiden-Boston: Brill, 2006.
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sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O antigo ser egípcio



Para os antigos Egípcios a existência de qualquer homem dependia de cinco elementos, sem os quais a natureza humana individual não poderia subsistir. Um deles o corpo, ou a estrutura física em que a vida encontra suporte, chamada ha pelos Egípcios. A parte do corpo que os Egípcios consideravam mais importante era chamada ib, o coração. Não só o centro da actividade física, mas também a sede de pensamentos e de emoções. De facto, os Egípcios não tinham o cérebro em grande conta, a ponto de, no acto de mumificação, o cérebro ser retirado pelas narinas e deitado fora como se fosse um orgão menor. Já o coração a maior parte das vezes ficava no seu lugar, dentro da múmia.


A sombra constituía o segundo elemento essencial de qualquer humano, inclusivé do faraó. Os Egípcios chamavam-lhe shut e, porque era projectada a partir do corpo, acreditavam que na sombra havia qualquer coisa do corpo. As representações dos deuses eram por vezes designadas de shut.


Sem o ba nenhum homem sobreviveria. O ba consistia em tudo aquilo que constitui um homem e que não faz parte do corpo. Era a “personalidade” que emanava da pessoa. O conceito egípcio de ba aproxima-se do nosso conceito de “alma”, algo espiritual e não físico que sobrevivia à morte do corpo. Porém, nem só os corpos humanos tinham um ba, alguns objectos também, por exemplo uma porta. Imagine-se porquê.


Para além do ba, todo o indivíduo tinha um ka, a “força da vida”. O ka distinguia um morto de um vivo: só um ser vivo o tinha, os mortos já não. Para os Egípcios, o ka fora originado com o criador e transmitido aos mortais através do faraó e dos pais da pessoa em causa. O ka era representado com a figura do indivíduo, sendo por isso chamado o seu “duplo”. Como não seria de esperar outra coisa, o ka era alimentado com comida e bebida. Curiosamente, apenas os seres humanos e os deuses possuíam ka, os animais parece que não.


O último elemento imprescindível à constituição plena do indivíduo era o nome, ren como lhe chamavam os Egípcios. A importância do nome reflecte-se no cuidado quase obsessivo em preservar os nomes nos túmulos e em outros monumentos pessoais. Alguma razão deviam ter os Egípcios: sem saber o nome de uma pessoa, não pode dizer-se que se conheça esse indivíduo, ainda hoje. Imagine-se uma pessoa sobre a qual tudo se conhece excepto o nome.


Assim, ha, shut, ba, ka e ren definiam e constituiam o indivíduo egípcio, sem mais. Uma espécie de micro-estrutura que se embutia mais ou menos perfeitamente na macro-estrutura cultural do Antigo Egipto, essa terra que Eça de Queirós chamou “o país mais fecundo que ao homem foi dado semear”.


Cf. Allen, James P., Middle Egyptian, Cambridge: Cambridge University Press, 2000.
.....Araújo, Luís Manuel de, Eça de Queirós e o Egipto Faraónico, Lisboa: Editorial Comunicação, 1988.
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quarta-feira, 2 de setembro de 2009

A poção do amor



Na Atenas clássica, as leis que regulavam o homicídio formavam uma categoria especial, já que parece terem sido sujeitas a poucas alterações desde as reformas de Sólon, no séc. VII a.C. A razão desta estabilidade parece encontrar-se na forte ligação desta área jurídica com a religião: o homicídio poluía não só o assassino como também aqueles que com ele contactavam. Logo no início da acusação, o homicida era advertido para se abster de qualquer actividade religiosa e social, pois estava impuro. Os julgamentos destes casos decorriam mesmo ao ar livre para que juízes e acusados não convivessem sob um mesmo tecto. O Areópago era apenas o local mais imporante destes julgamentos.

Antífone, um logógrafo ateniense do séc. V a.C., escritor profissional de discursos, deixou-nos um discurso de acusação em que uma mulher é acusada de ter envenenado o seu marido. O acusador – quem leu em julgamento o discurso preparado por Antífone – foi o filho do primeiro casamento do assassinado, a acusada a segunda esposa do morto e o defensor desta o seu filho, meio-irmão do acusador, já que nasceu do segundo casamento do pai.

O acusador alega que o facto do filho do assassinado e da acusada ter recusado a aplicação de tortura a uma escrava, para conseguir uma confissão de culpa, prova que ele sabe bem quem foi o responsável pelo homicídio do pai de ambos. Após ter alegado a intenção de ocultação da verdade, por parte do seu meio-irmão e da sua madrasta, o acusador avança com a reconstituição da cena do crime.

A sua madrasta dirigiu-se a uma concubina de Filoneu, amigo do assassinado, para se queixar que o seu marido tinha perdido o afecto por ela. Porém, pensava ter a solução para recuperar o amor do seu marido: preparara uma poção amorosa para resolver o problema. Pediu então à concubina que administrasse a poção ao seu esposo logo que pudesse.

Esta concubina, numa ocasião em que Filoneu e o seu amigo estavam a jantar, depois de terem feito sacrifícios a Zeus, em momento oportuno derramou a poção amorosa no copo do assassinado e, pensando que também não faria mal acicatar um pouco mais o desejo de Filoneu por ela mesma, verteu uma quantidade ainda maior da poção amorosa na taça do seu amante.

O resultado da poção amorosa não podia ser outro: Filoneu morreu imediatamente e o seu amigo ficaria de tal modo doente que passado vinte dias também morreria. A poção amorosa que a agora acusada em julgamento preparara era afinal veneno mortal!

O acusador pede ao tribunal que a acusada seja condenada sem piedade alguma, já que ela engendrou o terrível crime sem qualquer hesitação nem pudor. Alega que foi o seu próprio pai que lhe pediu que tratasse da acusação da sua segunda esposa, tendo-lhe revelado a verdade dos factos no período decorrido entre a beberagem fatal e o seu último suspiro.

As dúvidas diminuiriam com a aplicação de tortura à concubina de Filoneu, que confessaria ter administrado a poção amorosa ao seu amante e ao pai do acusador neste julgamento. A sentença final não é conhecida, mas sabe-se que a concubina – que não chegou a incriminar a madrasta do acusador, apenas confessou ter administrado o cocktail fatal – morreu logo depois. Passou-se isto no séc. V a.C., em Atenas: com tragédias assim quem precisa de Romeu e Julieta?
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Cf. Carey, Christopher, Trials from Classical Athens, London - New York: Routledge, 2001.
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