quarta-feira, 2 de setembro de 2009

A poção do amor



Na Atenas clássica, as leis que regulavam o homicídio formavam uma categoria especial, já que parece terem sido sujeitas a poucas alterações desde as reformas de Sólon, no séc. VII a.C. A razão desta estabilidade parece encontrar-se na forte ligação desta área jurídica com a religião: o homicídio poluía não só o assassino como também aqueles que com ele contactavam. Logo no início da acusação, o homicida era advertido para se abster de qualquer actividade religiosa e social, pois estava impuro. Os julgamentos destes casos decorriam mesmo ao ar livre para que juízes e acusados não convivessem sob um mesmo tecto. O Areópago era apenas o local mais imporante destes julgamentos.

Antífone, um logógrafo ateniense do séc. V a.C., escritor profissional de discursos, deixou-nos um discurso de acusação em que uma mulher é acusada de ter envenenado o seu marido. O acusador – quem leu em julgamento o discurso preparado por Antífone – foi o filho do primeiro casamento do assassinado, a acusada a segunda esposa do morto e o defensor desta o seu filho, meio-irmão do acusador, já que nasceu do segundo casamento do pai.

O acusador alega que o facto do filho do assassinado e da acusada ter recusado a aplicação de tortura a uma escrava, para conseguir uma confissão de culpa, prova que ele sabe bem quem foi o responsável pelo homicídio do pai de ambos. Após ter alegado a intenção de ocultação da verdade, por parte do seu meio-irmão e da sua madrasta, o acusador avança com a reconstituição da cena do crime.

A sua madrasta dirigiu-se a uma concubina de Filoneu, amigo do assassinado, para se queixar que o seu marido tinha perdido o afecto por ela. Porém, pensava ter a solução para recuperar o amor do seu marido: preparara uma poção amorosa para resolver o problema. Pediu então à concubina que administrasse a poção ao seu esposo logo que pudesse.

Esta concubina, numa ocasião em que Filoneu e o seu amigo estavam a jantar, depois de terem feito sacrifícios a Zeus, em momento oportuno derramou a poção amorosa no copo do assassinado e, pensando que também não faria mal acicatar um pouco mais o desejo de Filoneu por ela mesma, verteu uma quantidade ainda maior da poção amorosa na taça do seu amante.

O resultado da poção amorosa não podia ser outro: Filoneu morreu imediatamente e o seu amigo ficaria de tal modo doente que passado vinte dias também morreria. A poção amorosa que a agora acusada em julgamento preparara era afinal veneno mortal!

O acusador pede ao tribunal que a acusada seja condenada sem piedade alguma, já que ela engendrou o terrível crime sem qualquer hesitação nem pudor. Alega que foi o seu próprio pai que lhe pediu que tratasse da acusação da sua segunda esposa, tendo-lhe revelado a verdade dos factos no período decorrido entre a beberagem fatal e o seu último suspiro.

As dúvidas diminuiriam com a aplicação de tortura à concubina de Filoneu, que confessaria ter administrado a poção amorosa ao seu amante e ao pai do acusador neste julgamento. A sentença final não é conhecida, mas sabe-se que a concubina – que não chegou a incriminar a madrasta do acusador, apenas confessou ter administrado o cocktail fatal – morreu logo depois. Passou-se isto no séc. V a.C., em Atenas: com tragédias assim quem precisa de Romeu e Julieta?
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Cf. Carey, Christopher, Trials from Classical Athens, London - New York: Routledge, 2001.
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